Adriano era um profissional com futuro promissor. Advogado formado pela prestigiada Universidade de São Paulo, a USP, ele ainda ocupava a função de obreiro na igreja que frequentava. Aspirava ao pastorado – o que, conforme a própria Bíblia, é uma excelente opção para o crente. Fiel ao seu líder espiritual, Adriano costumava seguir seus conselhos e determinações à risca, entendendo que desta forma estava agradando a Deus. Chegou a fazer um voto público de lealdade ao dirigente. “Ele fazia uma espécie de mantra em torno do versículo que diz que quem honra o profeta recebe galardão de profeta”, lembra. Gradativamente, o jovem obreiro passou a negligenciar suas responsabilidades fora da igreja, como o trabalho e o cuidado com a família, tudo em prol daquele seu voto. Submetia-se a condições duras, enquanto o pastor não se furtava a luxos como mesas fartas e carros importados. A mulher e os dois filhos de Adriano acabaram abandonando-o, não suportando o controle exercido pelo pastor sobre sua vida. Frustrado, o advogado fraquejou na fé, envolveu-se com outras mulheres e acabou engravidando uma delas.
A vida do rapaz virou do avesso. Hoje, Adriano aguarda o nascimento do bebê inesperado e preocupa-se com o baixo orçamento e a impossibilidade de rever constantemente os filhos, que vivem com sua ex-mulher. “É uma loucura o dano que meus filhos sofreram por causa disso tudo. Não há indenização que pague o que esse pastor causou em minha vida”, desabafa. Este e outros relatos, verídicos apesar da omissão dos nomes verdadeiros, constam do livro Feridos em nome de Deus (Mundo Cristão), da jornalista evangélica Marília Camargo César. A partir do depoimento de gente que se considera vítima de líderes religiosos autoritários, a autora realiza um estudo sério sobre essa realidade, analisando as diferentes situações envolvidas no círculo de abuso com sensibilidade e propriedade. A obra descreve as diferentes formas que o abuso religioso pode assumir – pastores que dominam suas ovelhas sob o ponto de vista emocional, financeiro e psicológico, quase sempre com consequências ruins. “O líder impõe sua visão de mundo sobre a ovelha, e esta a aceita como uma ordem divina que precisa ser obedecida, sob pena de punição”, diz Marília (ver quadro).
“O abuso espiritual poderia ser definido como o encontro entre uma pessoa fraca e uma forte, em que a segunda usa o nome de Deus para influenciar a outra e levá-la a tomar decisões que acabam por diminuí-la física, material ou emocionalmente”, define Marília. O problema acontece mais comumente em igrejas pentecostais, onde geralmente o líder tem maior autonomia e pode apelar para elementos empíricos, como supostas profecias ou revelações para legitimar seu domínio sobre a vida dos fiéis. Estabelece-se então uma relação que vai muito além do saudável discipulado bíblico e pode envolver áreas pessoais da vida do crente. “A obediência ao líder não pode ser cega. Todo ensino deve ser confrontado com as verdades bíblicas, para evitar desvios de rota”, adverte o pastor Paulo Romeiro, autor dos livros Supercrentes e Decepcionados com a graça, lançados pela mesma editora, em que aborda, entre outros assuntos, a questão do controle exagerado do rebanho pelos pastores. Para o estudioso, no entanto, um erro não pode justificar outro: “A Epístola aos Hebreus que ordena explicitamente: ‘Obedeçam aos seus líderes e submetam-se à autoridade deles. Eles cuidam de vocês como quem deve prestar contas. Obedeçam-lhes, para que o trabalho deles seja uma alegria e não um peso, pois isso não seria proveitoso para vocês’”, recita.
“Porta-voz divino” – Quando o círculo do abuso religioso é analisado mais de perto, nota-se que ambas as partes, abusado e abusador, sofrem no processo. A base dessa semelhança está no fato de que, em um dado momento, as duas pontas perderam o controle, sua identidade e a própria dignidade. “Quem exagera no autoritarismo também foi ou está sendo vítima de abuso”, aponta o pastor batista Ed René Kivitz. Ele explica que a figura de um pastor único não tem respaldo do Novo Testamento. “A única vez em que a palavra ‘pastor’ é usada no singular é para se referir a Jesus. Em todas as demais, é usada no plural, para indicar um grupo de anciãos, ou presbíteros, que zela pelo bem-estar de toda a comunidade.” Nesse caso, a autoridade fica dividida entre um colegiado, o que dificulta a possibilidade de haver exageros no controle da obra de Deus e força os líderes a prestarem contas uns aos outros.
Fato é que muito sofrimento poderia ser evitado nas igrejas se os fiéis estivessem mais preparados para reconhecer os abusadores ou o ambiente propício para formá-los. O pastor Ricardo Gondim, dirigente da Igreja Betesda em São Paulo, realizou um estudo expondo algumas características comuns aos pastores abusadores. Entre estas, encontra-se a postura incontestável do líder, o qual passa a ter a palavra final para todas as questões, tornando-se dono da verdade, uma espécie de “porta-voz divino”. “O medo na relação entre o fiel e seu pastor pode ser um sinal de problemas, pois essa relação deve ser permeada de amizade sincera, doação, afeto e solidariedade”, comenta Gondim.
Autoritarismo, manipulação e desrespeito
Autora do livro Feridos em nome de Deus, a jornalista Marília Camargo César falou sobre as dimensões que o abuso espiritual pode ter na vida de fiéis submetidos a lideranças eclesiásticas autoritárias. “Mas é possível identificar o problema e lidar com suas consequências”, diz, nesta entrevista a CRISTIANISMO HOJE:
CRISTIANISMO HOJE – A senhora diz que a motivação para escrever o livro foi um caso de abuso espiritual que presenciou. Fale sobre essa experiência.
MARÍLIA CAMARGO CÉSAR – Não fui, particularmente, machucada por pastores, porque não andava rotineiramente muito próxima deles, embora convivêssemos bem. Mas testemunhei, na vida de amigos próximos, o estrago que o convívio com nossas antigas lideranças produziu. Muitas histórias de abuso começaram a aparecer depois que um dos pastores de nossa antiga comunidade afastou-se por motivo de saúde. Pessoas que caminhavam bem perto daquele líder começaram a contar histórias tenebrosas de abuso de poder, manipulação psicológica e tirania explícita. As vítimas de abuso eram pessoas adultas e com uma boa formação socioeconômica, por isso eu não conseguia entender como haviam se deixado manipular daquele jeito, só tendo coragem de denunciar o que havia depois que ele se afastou.
Qual foi o caso mais grave de abuso que a senhora conheceu enquanto escrevia o livro?
Foi o caso de uma jovem que sofria de uma doença degenerativa rara – miastenia gravis – e que foi simplesmente massacrada por sua congregação porque não alcançou plenamente a cura. Além desse problema, ela foi levada a crer, pelo pastor, que deveria orar e investir num relacionamento afetivo com um rapaz da igreja, situação que acabou lhe causando enorme constrangimento quando ele apareceu na igreja com uma nova namorada. De certa forma, foi bom para ela, porque o embaraço serviu-lhe para mostrar o nível de adoecimento daquela comunidade, o nível de fundamentalismo que praticavam, e isso acabou por abrir os seus olhos. Ela saiu da igreja e, até onde eu sei, não fez parte de nenhuma outra congregação desde então.
Em sua opinião, quais são os principais tipos de abuso espiritual e suas características?
O livro fala de abuso de poder, de abuso financeiro, mas mostra as nuances do abuso que julgo mais sutil e difícil de identificar, mas bastante devastador da mesma forma, que é o abuso de ordem psicológica ou emocional. O líder impõe sua visão de mundo sobre a ovelha, e esta a aceita como uma ordem divina que precisa ser obedecida, sob pena de punição. O pastor diz, por exemplo, que o discípulo deve casar-se com determinada pessoa, porque teve uma “visão” de que esta era a vontade de Deus para a sua vida. Não importa que não haja, a princípio, nada em comum que possa unir aquele casal. E o fiel obedece. O pastor fala para uma mulher que apanha sistematicamente de seu marido que ela deve fidelidade a ele, porque isso é bíblico. Ou então fala para uma pessoa com uma doença grave que ela ainda não foi curada porque está fraquejando na fé. Todos esses são exemplos reais de pessoas que só se recuperaram emocionalmente após muitas horas de psicoterapia. E, claro, após deixarem essas igrejas.
E por que as pessoas deixam a situação chegar a tal ponto?
Depois de escrever o livro, compreendi que, quando acreditamos estar sofrendo alguma coisa por amor a Deus, aguentamos as piores humilhações. Aquelas pessoas acreditavam, sinceramente, que estavam sendo disciplinados por profetas do Senhor para o seu próprio bem e crescimento espiritual, quando na verdade estavam sendo é espezinhados emocionalmente.
Como os abusos podem ser evitados?
Maturidade espiritual não é alguma coisa trivial, que se alcance da noite para o dia. É preciso uma longa caminhada, tolerância e paciência; o fiel precisa estar bem acompanhado – e aí se incluem lideranças maduras, com uma boa formação, saudáveis física, psicológica e teologicamente, que possam ensinar um cristianismo autêntico, vivo e não-fundamentalista. É preciso também cercar-se de amigos verdadeiros, que nos apoiem e não fiquem nos julgando quando falamos aquilo que estamos sentindo, por mais horrível que isso possa ser.
Por: Marília Camargo
Fonte: Cristianismo Hoje