Biografia

Nada  é  mais  significativo,  quanto  à  grande  mudança  que  se  deu  no campo da teologia durante o século passado, do que o lugar agora cedido e a atenção dada ao grande homem de Genebra, que é o assunto desta palestra.

Até  há  quase  vinte  anos,  dava-se  pouca  atenção  a  João  Calvino,  e quando  alguém  falava  dele  era  para  amontoar  insultos  sobre  ele,  com desprezo. Ele era visto como uma pessoa cruel, dominadora e dura. Quanto à sua  obra,  dizia-se  que  ele  foi  o  autor  do  sistema  teológico  mais  opressivo  e ferrenho que já se viu. Segundo essa crença, os principais efeitos da obra que ele  realizou  no  campo  da  religião  foram  colocar  e  manter  as  pessoas  num estado  de  escravidão  espiritual  e,  numa  esfera  mais  ampla,  abrir  o  caminho para  o  capitalismo.  Acreditava-se,  pois,  que  a  sua  influência  foi  totalmente nociva e que ele não era de nenhum interesse palpável para o mundo, exceto o fato  de  ser  um  espécime,  se  não  um  monstro,  no  museu  da  teologia  e  da religião.

Não  é  essa  a  situação  hoje,  porém.  De  fato,  faz-se  mais  menção  dele agora  do  que  em  quase  um  século,  e  Calvino  e  o  calvinismo  são  temas  de muito argumento e debate nos círculos teológicos. Talvez seja o avivamento teológico  ligado  ao  nome  da  Karl  Barth  que  explica  isto,  se  a  gente  vê  as coisas  externamente.  Mas  também  é  preciso  explicar  Barth  e  a  sua  posição.

Que foi que o levou de volta a Calvino? A sua própria reposta é que ele não pôde  encontrar  em  nenhum  outro  lugar  uma  explicação  satisfatória  da  vida, especialmente  dos  problemas  do  século  vinte,  nem  tampouco  uma  âncora para a sua alma e para a sua fé em meio ao fragor da tormenta. Seja qual for a explicação,  o  fato  é  que  se  formaram  sociedades  calvinistas  neste  país,  nos Estados Unidos e Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia e na África do Sul, à  parte  das  que  se  formaram  noutros  países  da  Europa  antes  da  guerra.  De fato, foi realizado um Congresso Calvinista Internacional em Edimburgo em 1938, e duas conferências similares foram levadas a efeito na América durante a guerra. Também são publicados regularmente periódicos para discussão de tópicos  e  problemas  do  ponto  de  vista  do  ensino  de  Calvino;  e  este  ano  o livro-texto  que  está  sendo  usado  nas  aulas  teológicas  do  New  College,  Edimburgo, é a Instituição da Religião Cristã (as “Institutas”), de João Calvino.

Muito  me  agradaria  se  eu  pudesse  acrescentar  que  houve  um  movimento similar em Gales.

Portanto, o tempo está maduro para olharmos de relance este homem que influenciou a vida do mundo em tão grande medida.

Palestra radiofônica para a BBC, em Gales, em 25 de junho de 1944.

Que  dizer  do  homem  propriamente  dito?  Ele  nasceu  em  Noyon,  na Picardia, em 1509. Sabemos muito pouco do seu pai e da sua mãe, exceto que a  sua  mãe  era  famosa  por  sua  vida  piedosa.  Desde  o  princípio  Calvino mostrou  que  tinha  capacidades  mentais  fora  do  comum.  Os  seus  pais  eram católicos romanos, e a sua intenção natural era preparar o seu inteligente filho para  uma  carreira  eminente  na  igreja.  Daí,  os  seus  campos  de  estudo  eram filosofia, teologia, direito e literatura. Embora sobressaísse em todas as áreas, a sua esfera favorita era a literatura, e o vemos em Paris, aos vinte e dois anos de  idade,  como  erudito  humanista,  sendo  a  sua  maior  ambição  na  vida  ter renome como escritor. Era um aluno tão extraordinário que muitas vezes fez preleções  aos  seus  colegas  de  estudos  substituindo  os  seus  professores,  e quanto  ao  seu  estilo  de  vida  e  à  sua  conduta,  ele  era  conhecido  por  sua sobriedade.  Na  verdade,  ele  dava  ênfase  à  distinção  moral  com  tanta veemência  que  recebeu  o  apelido  de  “O  Caso  Acusativo”.  Mas,  como acontecera com Lutero antes dele, e com João Wesley e muitos outros depois, a moralidade não foi suficiente para mitigar sua alma sedenta. Quando estava com  vinte  e  três  anos  de  idade,  experimentou  a  conversão  evangélica,  e  o curso  da  sua  vida  se  transformou  completamente.  Tendo  enxergado  a verdade, e tendo experimentado o poder desta em sua alma, deu as costas à igreja de Roma e se tornou protestante. Não dispomos de tempo para seguir a história da sua vida, porém sabemos que ele passou quase todo o resto da sua vida em Genebra, como ministro do evangelho. Trabalhou ali desde 1536 até a sua morte, em 1564,  com exceção do período de  1538 a  1541,  quando as autoridades  genebrinas  o  expulsaram,  e  ele  foi  para  o  “exílio”,  em Estrasburgo.

Calvino era magro, de estatura mediana, testa larga e olhos penetrantes. Sua saúde foi muito frágil durante a sua vida toda, porque ele sofria de asma. Era  extremamente  difícil  persuadi-lo  a  comer  e  a  dormir.  Apesar  de  ter  um espírito  senhoril,  o  testemunho  dos  que  o  conheceram  melhor  sugere  que nunca houve um homem tão humilde e santo como ele. Seu principal objetivo na vida era glorificar a Deus, e ele se dedicou a isso completamente, sem pena do  seu  corpo  nem  dos  seus  recursos.  Ele  gostava  de  pensar  em  si  mesmo como  escritor  cristão  e,  se  tivesse  seguido  a  sua  inclinação  pessoal,  teria limitado  a  sua  obra  unicamente  a  esse  campo;  entretanto  um  amigo  o ameaçou  com  o  juízo  de  Deus,  se  não  se  comprometesse  a  pregar,  e  o resultado foi que, segundo a principal autoridade sobre a sua vida, ele pregou em média todos os dias e, com freqüência, duas vezes num dia, em Genebra, durante  vinte  e  cinco  anos.  Devido  à  asma,  ele  falava  lentamente,  e  não  se poderia descrevê-lo como orador eloqüente. Tampouco se pode pensar nele como um pregador que só apelasse para a mente e para o intelecto. Uma certa ternura piedosa muitas vezes irrompia nas reuniões, subjugando os presentes.

O mundo  lembra-se dele, não tanto como pregador, mas como autor de  cinqüenta  e  nove  obras  volumosas.  Ele  escreveu  trinta  comentários  dos livros da Bíblia, incluindo-se todo o Novo Testamento, menos a Segunda e a Terceira Epístolas de João e o livro de Apocalipse.

Além disso, Calvino era um constante missivista e, das suas cartas, 4000 foram  publicadas.  Também  teve  infindáveis  oportunidades,  numa  época amante  de  polêmicas,  da  fazer  uso  da  sua  incomparável  habilidade  como polemista. Ninguém se lhe igualava no uso do “florete”, e quando a isso se acrescenta o seu talento especial para a lógica, vemos nele, possivelmente, o maior “polemista” que o mundo já viu.

Quando  recordamos  que  ele  estava  perpetuamente  envolvido  em contendas ou em consultas com as autoridades de Genebra, concernentes às condições morais e sociais da cidade, não nos surpreende que tenha morrido com apenas cinqüenta e cinco anos de idade. O mistério é como ele conseguiu realizar  tanto  em  tão  pouco  tempo.  Ninguém  sabe  onde  ele  foi  sepultado, porém  a  sua  maior  contribuição  para  a  literatura  teológica,  a Instituição da Religião  Cristã  (as  “Institutas”),  sobressai  como  um  memorial  para  ele.  Ele escreveu  essa  obra  quando  tinha  vinte  e  cinco  anos  de  idade,  e  a  primeira publicação  dela  foi  na  Basiléia,  em  1536,  todavia  Calvino  continuou trabalhando nela, ampliando-a e reeditando-a durante a sua vida toda.

É  sem  dúvida  a  sua  obra  prima.  A  verdade  é  que  se  pode  dizer  que nenhum outro livro teve tanta influência sobre o homem e sobre a história da civilização.  Não  é  tampouco  exagero  dizer  que  foram  as  “Institutas”  que salvaram  a  Reforma  Protestante,  pois  elas  constituem  a summa  theologica  do protestantismo, e a mais clara declaração de fé que a fé evangélica já teve.

Nas “Institutas” vemos o lugar de Calvino na Reforma Protestante. Ele pertence  à  segunda  onda  de  reformadores.  Lutero  tinha  virtualmente concluído  a  sua  obra  antes  de  Calvino  começar.  Lutero  foi  a  “Estrela  da Alva”;  nas  mãos  de  Deus,  ele  deu  início  ao  movimento.  Lutero  é  o  grande herói dos protestantes; é caracterizado por sua originalidade, por sua audácia e pelo elemento dinâmico da sua vida. Lutero era um vulcão a expelir lavas de idéias  em  todas  as  direções,  sem  obedecer  muito  a  um  modelo  ou  a  um sistema. No entanto, as idéias não podem viver e durar sem corpo, e a grande necessidade do movimento protestante nos últimos tempos de Lutero era um teólogo capaz de organizar e expressar a nova fé dentro de um sistema. Essa pessoa  era  Calvino.  Pode-se  dizer,  pois,  que  ele  salvou  o  protestantismo dando-lhe um corpo de teologia em suas “Institutas” e é delas que provêm a fé e a teologia da maioria das igrejas protestantes. Essa é a espinha dorsal dos Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra e da Confissão de Westminster, que rege a crença das igrejas presbiterianas da Escócia, dos Estados Unidos, e de todos os outros países. Nas “Institutas” estava baseada a fé dos puritanos, e  a  história  da  Suíça  e  da  Holanda  não  pode  ser  explicada,  exceto  neste contexto.

Apenas  uma  palavra  sobre  a  sua  doutrina.  O  aspecto  principal  de Calvino é que ele baseia tudo na Bíblia. Não há nele uma mistura de filosofia aristotélica e as Escrituras com a primeira praticamente com o mesmo grau de importância da segunda, como na Summa de Tomás de Aquino. Para Calvino, a Bíblia é a única autoridade, e ele não deseja nenhuma filosofia, senão a que emana das Escrituras. E nas “Institutas” que se obtêm teológica bíblica pela primeira  vez,  em  vez  de  teologia  dogmática.  Calvino  não  arrazoa  de  modo indutivo, como os católicos romanos, mas, em vez disso, extrai conclusões e elabora de maneira dedutiva aquilo que é ensinado na Bíblia. A revelação não é  acréscimo  à  razão,  e  não  se  pode  raciocinar  apropriadamente  fora  da revelação. Para ele, a grande verdade central e absolutamente importante era a soberania de Deus e a glória de Deus. Temos que começar aqui, e daqui tudo mais  provém.  Foi  Deus  que,  por  Sua  livre  vontade,  e  conforme  a  Sua sabedoria infinita,  criou o mundo. Contudo, o pecado entrou  em cena e, se não fosse a graça de Deus, não haveria esperança para o mundo. O homem é uma  criatura  decaída,  e  tem  a  sua  mente  em  inimizade  para  com  Deus.  E totalmente incapaz de salvar-se e de unir-se de novo a Deus. Todos estariam perdidos  se  Deus  não  escolhesse  alguns  para  a  salvação,  e  isso incondicionalmente.  E  estes  só  podem  ser  salvos  por  meio  da  morte  de Cristo, e eles não veriam ou não aceitariam a salvação se Deus, por Sua graça irresistível, no Espírito Santo, não lhes abrisse os olhos e não os persuadisse (sem  os  forçar)  a  aceitar  a  oferta.  Mesmo  depois  disso,  é  Deus  quem  os sustenta  e  os  livra  de  caírem.  Portanto,  a  salvação  deles  é  segura,  porque depende, não deles e da capacidade deles, e sim da graça de Deus. A Igreja é uma comunidade dos eleitos. Portanto, ela é livre, e não há nenhum rei sobre ela, exceto o Senhor Jesus Cristo e, por isso, ela se arroga completa e perfeita liberdade espiritual.

Quanto  ao  mundo  de  fora  da  Igreja,  ele  seria  destruído  rapidamente pelo pecado, se Deus, pela graça comum, não o protegesse e não estabelecesse limites  para  os  efeitos  do  pecado.  O  mundo  continua  sendo  o  mundo  de Deus, e mesmo o pecado e satanás, em última análise, estão sob o controle de Deus. Antes da fundação do mundo, Deus tinha o Seu propósito infinito, e se pode  ver  esse  propósito  cumprir-se  gradativamente,  mas  com  segurança, através  do  Velho  Testamento,  e  de  modo  especial  na  vida  de  Israel;  vê-se, porém, principalmente em Jesus Cristo, no que Ele fez na terra e no que Ele continua fazendo através dos séculos. Nada pode impedir o Seu propósito, e na  plenitude  dos  tempos  os  remos  do  mundo  se  tornarão  propriedade  de nosso Senhor Jesus Cristo; e Ele reinará para sempre. No ínterim, devemos ensinar aos homens que este mundo é o mundo de Deus, que todo dom que um homem possui  é dom  de Deus, que todos os homens  são um  só como pecadores  diante  de  Deus,  e  que  nenhum  rei,  nem  qualquer  outro  homem, tem o direito de tiranizar os seus semelhantes. Temos que ter ordem, temos que ter disciplina. O homem tem direito à liberdade, porém não à livre licença. Essa  é  a  essência  do  ensino  de  Calvino.  Ele  desenvolveu  esse  ensino minuciosamente, de molde a cobrir todos os aspectos da vida. Durante  o  seu  ministério  em  Genebra,  ele  persuadiu  as  autoridades  a porem  em  ação  essas  idéias,  e  nunca  houve  uma  cidade  como  aquela.  Mark Pattison não exagera quando diz: “Ele foi o instrumento para a concentração naquele  recanto  estreito  de  uma  força  moral  que  salvou  a  Reforma  e,  na verdade, a Europa. É de se duvidar que toda a história possa fornecer outro caso de tal vitória do poder moral”. Não é de admirar que, hoje, os homens que enxergam longe, num mundo com este, retornem ao homem de Genebra.

Que é que, fora o evangelho que ele ensinava, poderia salvar o mundo? E o ensino é este: “O Senhor reina, tremam as nações” (Salmo 99:1). “O Senhor reina; regozije-se a terra” (Salmo 97:1). Soli Deo Gloria. *

* A reedição que James Clarke fez em 1949 da mais respeitável obra de Calvino traz a seguinte apresentação de capa, escrita pelo Dr. Lloyd-Jones:  O anúncio feito de que os senhores James Clarke & Co. estão para lançar uma nova edição da Instituição da Religião Cristã (as “Institutas”) de Calvino, é a melhor notícia que ouvi dentro  de  um  bom  período  de  tempo.  Que  eles  consigam  fazer  isso  pelo  preço extraordinariamente baixo de trinta xelins, nestes dias, é espantoso.

Alguém pode perguntar por que uma obra como esta, publicada pela primeira vez há mais de quatrocentos anos, deveria ser impressa de novo, e por que alguém haveria de lê-la.

Sugiro as seguintes respostas, no mínimo:

As “Institutas” são em si mesmas um clássico teológico. Nenhuma obra teve maior influência, ou influência mais formativa na teologia protestante. Nem sempre se percebe, porém,  que,  em  acréscimo  ao  seu  pensamento  sólido  e  sublime,  foi  escrita  num  estilo sumamente  emocionante  e,  às  vezes,  comovente.  Diferentemente  de  muita  teologia moderna,  que  se  diz  proveniente  dela,  a  obra  de  Calvino  é  profundamente  devocional.

Nenhum livro gratifica a leitura mais do que este, especialmente no caso dos pregadores da palavra.

É particularmente próprio o aparecimento da nova edição agora. Durante os trinta anos  passados,  tem  havido  um  novo  interesse  pela  teologia  reformada,  e  o nome  de Calvino  é  citado  mais  freqüentemente  do  que  o  foi  em  mais  de  meio  século.  É  nas “Institutas”  que  se  vê  a  exposição  formulada  e  sistemática  da  sua  posição  essencial.  É imperativo, pois, que a gente leia as “Institutas” para entender muito da discussão teológica dos dias atuais.

A mais urgente razão pela qual todos nós devemos ler as “Institutas” deve achar-se, porém, nos tempos em que vivemos. Num mundo abalado em seus alicerces e carente de alguma autoridade final, não há nada que tanto se preste para fortalecer e estabilizar a alma da gente como esta magnífica exposição e elaboração da gloriosa doutrina da soberania de Deus. Esta foi a “ração de ferro da alma” dos mártires da Reforma, dos Pais Peregrinos, dos  Pactuários  e  de  muitos  outros  que  tiveram  que  enfrentar  perseguição  e  morte  por Cristo.

Nunca foi mais necessária que hoje. Os senhores James Clarke & Co. fizeram de todos nós seus grandes devedores.

Fonte: Discernindo os Tempos, D. Martyn Lloyd-Jones, Editora PES, p. 42-47.

Por: David Martyn Lloyd-Jones

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