Uma dos aspectos mais lindos e desafiadores da história da igreja na Idade Média é a existência de uma igreja militante, orgânica, apostólica, desafiadora, em contraste com a igreja institucionalizada. Abrindo o baú da história é possível ver uma igreja sem medo da verdade, desafiadora, e que não temia ser perseguida e levada à fogueira por seus inquisidores. Perseguida pelo sistema religioso da época primeiramente representado pelos católicos romanos e depois pela igreja luterana, essa igreja militante continua vencendo os desafios até os nossos dias.
É difícil encontrar uma linha de história da igreja que nos permita ver a igreja orgânica em contraste com a institucionalizada, porque os documentos dos vários períodos da história foram queimados e destruídos e, a maior parte dos registros veio da pena dos que condenavam esses Irmãos, isto é, os documentos que nos permitem ver a existência dessa igreja militante vêm das mãos dos perseguidores.
É possível ver a verdadeira igreja a partir do ano 900-1000 mais ou menos. Os albingenses, apesar de surgirem ao redor de 1120 – data incerta – só ganharam este nome na metade do século XII depois do concílio de Lombers. Um de seus líderes foi Pierre de Brueys, diligente pregador “que durante vinte anos, enfrentou todos os perigos com coragem, viajando por Dauphiny, Provência, Languedoc e Gascony atraindo milhares de pessoas, livrando-as do ensino supersticioso a que tinham sido conduzidas, e trazendo-as de volta aos ensinamentos das escrituras, até ser queimado em St. Gilles no ano 1126.” 1
Pierre de Brueys pregava que ninguém deveria ser batizado até que tivesse pleno uso de sua razão; que era inútil construir templos pois Deus aceita adoração sincera em qualquer local; que não se deveria adorar o crucifixo, e sim olhá-lo com horror por ser o instrumento sobre o qual Jesus sofreu; que o pão e o vinho não se transformam no corpo e no sangue de Cristo sendo apenas memoriais da morte de Cristo, e que as orações e as boas obras dos vivos não podiam trazer benefício algum aos mortos. Este era o ensinamento dos albigenses ou cátaros tidos como hereges aos olhos da igreja institucionalizada. E até mesmo ensinado por alguns professores de seminários evangélicos como hereges!
Os cátaros são algumas das vertentes que formaram o leito dos que eram chamados apenas de irmãos. Naquele tempo – como hoje – costumava-se dar um apelido, um nome a qualquer grupo ou movimento, e os albingenses foram chamados de cátaros – santos, perfeitos – porque pregavam um estilo de vida diferente. “Os perfeitos” ou “santos” estabeleceram grupos de irmãos no sul da França. “O grupo de crentes que se reunia à parte da Igreja Católica era muito grande e aumentava a cada dia. Eram freqüentemente chamados de albingenses, nome que vem de Albi, um distrito onde muitos deles residiam, mas o nome nunca foi usado por eles… estavam ligados aos irmãos – chamados de waldenses, pobres de Lyon, bogomiles, ou qualquer outro nome” 2
Na realidade, durante séculos nos vales alpinos do Piedmont “existiram congregações de crentes que se denominavam irmãos, que anos mais tarde ficaram conhecidos como waldenses ou vaudois, sendo que eles mesmos não aceitavam estes nomes. Esses irmãos conseguiam traçar sua origem aos tempos apostólicos. Assim, muitos dos chamados cátaros, paulinos e outras igrejas, não podem ser considerados “reformados” porque nunca se afastaram do ensinamento do Novo Testamento, como fizeram os romanos, os gregos e tantos outros, mas sempre se mantiveram fieis, de alguma maneira, a tradição apostólica. Desde a época de Constantino havia os que pregavam o evangelho, começavam igrejas, sem serem influenciados pela igreja de Roma e pelo governo dos seus dias… Nunca se deixaram levar pela idolatria da igreja dominante e podiam ser encontrados nas montanhas Taurus e nos vales alpinos. Eles consideravam as escrituras como regra de fé doutrinária e como regra de ordem na igreja.
Alguns inquisidores que perseguiam e matavam os “reformadores” afirmaram em seus relatórios que estes irmãos eram de longa tradição e existiam desde a era apostólica, 3 o que não deixa dúvidas de que uma igreja orgânica, pura e verdadeira sempre existiu desde os tempos apostólicos e existe até o dia de hoje sem se contaminar com o sistema dos homens.
Veja este dado da história:
“Foi solicitado ao Prior Marco Aurélio Rorenco, de Turim em 1630 que escrevesse um relato contando a história e as opiniões dos waldenses. Ele escreveu que os waldenses são tão antigos que não se pode indicar o tempo em que surgiram, mas que, no século IX e X não eram uma nova seita. Acrescentou que no século nono, longe de ser uma nova seita eram considerados uma raça de fomentadores e encorajadores de opiniões de pessoas que existiam antes deles. Depois acrescentou que Cláudio, Bispo de Turim era reconhecidamente um desses encorajadores, porque ele próprio negava reverência à cruz, rejeitava a veneração e invocação aos santos e era o principal destruidor de imagens. Em seu comentário sobre a epístola aos gálatas, Cláudio ensinava abertamente a justificação pela fé e aponta os erros da igreja que se desviara desta verdade.”
“Os irmãos que viviam nos vales nunca perderam a noção de sua origem e de sua continuação histórica. Quando a partir do século catorze os vales foram invadidos e as pessoas tinham que negociar com os governos, eles sempre enfatizavam suas origens. Ao Príncipe de Savoy, que os conhecia fazia anos, podiam sempre falar abertamente de sua fé afirmando que o que criam e praticavam vinha deste tempos imemoriais, desde os tempos dos apóstolos. Em 1544 eles disseram a Francis I imperador da França: “Esta confissão nós a recebemos de nossos antepassados, de pessoa a pessoa. (sic) Esta nossa religião que praticamos não é coisa desses dias, ou uma religião inventada alguns anos atrás, como afirmam nossos inimigos, mas é a religião de nossos pais e de nossos avós, sim, e de pais que viveram em tempos remotos. É a religião dos santos e dos mártires, dos que faziam confissão apostólica.”
“Quando entraram em contato com os reformadores no século XVI disseram: “Nossos antepassados afirmavam que existimos desde o tempo dos apóstolos. Em 1689 quando os valdenses retornaram para seus vales, seu líder, Henri Arnold afirmou que sua religião é tão antiga quanto o nome deles é venerado, e cita o relato do inquisidor Reinarius, que num relato ao Papa sobre a questão da fé explica que “eles existem desde os tempos antigos”. Arnold relata que é difícil imaginar que este bando de fieis já existia nos vales do Piedmont por mais de quatro séculos antes da aparição desses extraordinários homens como Lutero e Calvino e os subseqüentes faróis da Reforma. A igreja nunca foi reformada para ter o título de evangélica. Os waldenses, de fato, descendem dos refugiados da Itália que, depois de ouvirem o evangelho pregado por Paulo, abandonaram seu lindo país e fugiram, como aquela mulher do livro de Apocalipse, para estas montanhas selvagens, onde até o dia de hoje guardam o evangelho, de pai para filho, na mesma pureza e simplicidade dos dias de Paulo, o apóstolo”. 4
Seguindo a linha da história é possível que esses Irmãos foram recebendo nomes diversos ao longo da história, especialmente dos pré-reformistas: irmãos, apenas irmãos desde os tempos do apóstolo Paulo; cátaros ou albingenses; waldenses, devido a Pedro Waldo, Lolardos, como seguidores de Wycliff, hussitas, por serem descendentes de João Hus, anabatistas, porque batizavam de novo, menonitas porque Simon Mennon os liderou por toda a Europa, e moravianos porque, esses mesmos Irmãos que por 350 anos peregrinavam pela Europa em busca de paz devido a perseguição foram acolhidos na Morávia nas terras do Conde Von Zinzendorf.
Os que levaram Pedro Waldo ao novo nascimento (1160) não eram reformistas, mas irmãos que pertenciam a uma geração de crentes fieis que ocuparam desde o primeiro século até este período (ao redor do ano 1.100) os vales da França e da Itália. Deus tem seus fiéis ao longo da história.
A linhagem de boa parte da igreja evangélica hoje não vem da Reforma de Lutero, mas de uma linha de fieis que passou ao largo da Reforma, já existia por toda a Europa, apoiou a iniciativa de Martinho Lutero, e depois foi por este e por Zwinglio duramente perseguida. Basta que os batistas e os pentecostais clássicos puxem o fio da história para perceber que sua origem vem desde os tempos apostólicos. Parte da igreja evangélica dos dias de hoje não deve ligar sua origem a Lutero, mas aos movimentos que o precederam.
Num próximo artigo quero mostrar, para vergonha nossa, como a igreja de Roma e a igreja de Lutero perseguiram e mataram os Irmãos afogando-os e queimando-os nas fogueiras. Nossos irmãos de origem reformista que servem a Deus de todo coração, não têm culpa dos erros de seus antepassados, daqueles que usaram da força e do poder religioso e político para perseguir e matar os que não criam em seus dogmas e ensinamentos, mas que decidiam continuar fieis a Jesus Cristo. A história deixa registros para nos envergonhar, nos humilhar e para que vivamos em unidade com todos os que amam nosso Senhor Jesus Cristo.
Resquícios desses Irmãos podem ser encontrados em denominações – como Irmãos, Irmãos Livres, Irmãos Unidos ou Casa de Oração que desaguaram em igrejas com diversos nomes nos dias de hoje. Os irmãos Gunnar Vingren, Daniel Berg – fundadores das Assembléias de Deus e Luis Francesconi iniciador da Congregação Cristã freqüentavam a igreja dos Irmãos em Chicago e receberam imposição de mãos para a obra missionária do mesmo pastor da época.5
1 BROADBENT, E.H. The Pilgrim Church, p 85
2 Ibid p 88
3 Ibid p 90
4 Ibid pp 91-92
5 YUASA, Key, As Assembléias de Deus no Brasil, um pouco da pré-história, São Paulo 1983, p 12