A Reforma na Inglaterra e o movimento Puritano
A origem do puritanismo está ligada às confusões amorosas do rei Henrique VIII e à chegada do protestantismo continental à Inglaterra. A reforma se iniciou na Inglaterra pela autoridade do rei e do Parlamento, e a princípio, Henrique VIII buscou favorecer a reforma, mas depois, de 1539 a 1547, moveu uma perseguição aos protestantes. O rei morreu doutrinariamente católico romano. Em 1558 Elizabeth I ascendeu ao trono, e, alguns anos depois, uma antiga controvérsia sobre vestimentas atingiu seu auge na Igreja da Inglaterra. A questão imediata era se os pregadores tinham de usar os trajes clericais, mas isto era apenas um símbolo da questão maior a respeito das cerimônias, rituais e liturgias na Igreja, que eram resquícios da influência católica. Esta controvérsia marcou uma crescente impaciência entre os puritanos com relação à situação de uma Igreja “reformada pela metade”. Elizabeth morreu em 1603, sem deixar herdeiros, tendo indicado como seu sucessor Tiago I, filho de Maria Stuart, que já governava a Escócia. Só que, desde o princípio de seu reinado, Tiago I opôs-se ao movimento puritano. Em 1625, Carlos I, também opositor dos puritanos, foi coroado rei, e em 1645 irrompeu a guerra civil. Graças à habilidade militar de Oliver Cromwell (1599-1658), um congregacional, a cavalaria puritana bem treinada e disciplinada, que constituía a base do exército parlamentar, derrotou o exército do rei, na batalha de Naseby. A guerra civil terminou no ano seguinte, e em 1649, Carlos I foi executado, e Cromwell assumiu o governo inglês até sua morte, em 1658. Em 1660 Carlos II ascendeu ao trono, e a monarquia e o anglicanismo foram restaurados na Inglaterra. Então, em 1662, mais de dois mil pastores puritanos foram demitidos ou destituídos de suas paróquias, e quem não fosse anglicano não poderia colar grau nas Universidades de Oxford e Cambridge. Tais acontecimentos marcaram o fim do período puritano.
O sublime latoeiro
John Bunyan foi um dos mais importantes puritanos. Ele nasceu em novembro de 1628, em Elstow, em Bedford, filho de um pobre latoeiro (funileiro). Bunyan não recebeu mais do que uma educação primária básica, e serviu no exército parlamentar, liderado por Cromwell, de 1644 a 1647, na Guerra Civil contra Carlos I.
Em 1649 casou-se com uma filha de pais piedosos e através dela começou a buscar a Deus. Mas foi apenas após vários anos de profundo tumulto interior que veio a encontrar paz com Deus. Foi grandemente ajudado por John Gifford, pastor independente da Igreja de S. João em Bedford. Este homem havia sido um médico charlatão, e major no exército real, mas passou por uma conversão espantosa.
Bunyan foi apresentado a ele e à sua congregação graças ao testemunho de três ou quatro idosas mulheres que ele ouviu conversando numa tarde, quando estavam sentadas ao sol – falando sobre um certo “renascimento” e sobre algumas experiências maravilhosas que tinham tido. Ele descobriu que elas eram membros daquela igreja, e, em 1653, Bunyan tornou-se batista, e, embora tenha recebido uma instrução mínima, se tornou um dos autores mais influentes do século XVII.
Três obras tiveram forte influência sobre Bunyan: o Comentário à Epístola de Gálatas, de Martinho Lutero, O Caminho do Céu para o Homem Simples, de Arthur Dent, e A Prática da Piedade, de Lewis Bayley. Em 1657, Bunyan começou a pregar, e por isto, começou a ter dificuldades. Como não era ordenado, ele teve problemas com a lei que, em certos momentos da história da Inglaterra, proibia a prática da pregação a leigos. John Owen (1616-1683), um dos maiores teólogos da época, congregacional, ao ser questionado pelo rei Carlos II porque ouvia um latoeiro inculto, replicou: “pudesse eu possuir as habilidades do latoeiro para pregar, e, se apraz a sua majestade, alegremente renunciaria a todo o meu estudo”. A primeira esposa de Bunyan morreu em 1655, e desta união teve quatro filhos, sendo que sua primeira filha, Mary, era cega de nascença. Em 1659, aos 31 anos, casou com sua segunda esposa, Elizabeth. Em 1660, a monarquia foi restaurada, com o retorno de Carlos II, e isto significou perseguição para aqueles que não se conformavam com a imposição da liturgia e episcopalismo anglicanos.
Em 12 de novembro de 1660, Bunyan, numa franca desobediência civil tipicamente puritana, foi aprisionado por pregar, acusado de “fazer reuniões ilícitas e não se conformar com o culto nacional da Igreja Anglicana”, permanecendo doze anos na prisão de Bedford. Recusando sua própria liberdade, que dependia de ele parar de pregar, sua resposta foi: “se eu for solto hoje, pregarei amanhã” e continuou na cela quase que continuamente até 1672, porque não se comprometeu em parar de pregar. Por causa da bondade do carcereiro, ele podia visitar sua família. Certa vez, um pároco, tendo notícias dessas visitas, denunciou o carcereiro. Isto deu-se justamente num dia em que Bunyan estava visitando sua casa.
Ora, aconteceu que Bunyan começou a sentir-se mal e, por este motivo, voltou para a prisão mais cedo do que pretendia. Mal entrara em sua cela, chegou o fiscal da prisão e começou a interrogar o carcereiro: “todos os presos estão aqui?”
Respondeu ele: “sim”. “John Bunyan está aqui?” insistiu ele. “Sim”, tornou o carcereiro. E como o fiscal quisesse averiguar com seus próprios olhos, logo lhe foi apresentado o prisioneiro. Depois desse incidente o carcereiro disse a Bunyan: “podeis sair quando quiserdes porque sabeis melhor do que eu a hora de voltar”.
A viagem do Peregrino
Ele foi novamente aprisionado em 1677, e enquanto esteve na prisão escreveu suas obras mais conhecidas, entre elas, sua ficção O Peregrino (e, depois, sua continuação, A Peregrina), a mais notável alegoria da literatura inglesa – publicada graças à ajuda financeira do erudito Owen. A não ser a própria Bíblia, nenhum livro era mais respeitado entre as classes pobre e média da Inglaterra no século XVIII do que O Peregrino. Desde seu lançamento, tem sido mais traduzido que qualquer outro livro cristão! Como diz Ricardo Quadros Gouveia, professor do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (SP), “foi principalmente durante este seu período de clausura, uma imprevisível experiência monástica preparada por Deus em sua bem-humorada providência para este protestante radicalmente anti-católico, que Bunyan produziu a sua obra. (…) [Uma] imagem [cristã] essencial presente nas obras alegóricas de Bunyan é o da peregrinação, jornada ou caminhada cristã. Ao criar novas metáforas e símbolos para exemplificar as estações de uma jornada cristã, Bunyan combate a idéia bastante comum de que há um modelo rígido e fixo de caminhada cristã, uma forma normativa única de discipulado cristão… (…) Olhar para os livros de Bunyan como se estes estivessem dando uma nova fórmula precisa, um modelo único, ou um método seguro de vida cristã é vê-los de forma distorcida, como algo que nunca pretenderam ser, chegando a um resultado oposto ao provavelmente almejado pelo autor”.
Bunyan também escreveu, após sua prisão, outra alegoria, As Guerras da Famosa Cidade de Almahumana, que seria considerada a melhor alegoria já escrita, se não fosse O Peregrino. A popularidade de Bunyan era maior na Escócia e nos Estados Unidos do que na Inglaterra! Seu estilo é extremamente acessível, e seus livros foram escritos numa linguagem clara, concisa e simples. Enquanto permanecia na prisão, que ele chamava “a cova dos leões”, sentia saudades da sua congregação. Na esperança de fortalecê-los espiritualmente, começou a escrever alegorias. “Enquanto eu caminhava pelo deserto deste mundo, encontrei um certo lugar, onde havia uma caverna. Eu me deitei naquele lugar para dormir e enquanto dormia tive um sonho. Sonhei, olhei e vi um homem vestido de andrajos, de pé, em certo lugar, de costas para sua própria casa, um livro na mão e um grande fardo sobre seus ombros. Vi-o abrir o livro e lê-lo naquele lugar. E enquanto lia, chorava e tremia e, não podendo mais se conter, soltou um lastimável clamor, dizendo: que hei de fazer?” Em nenhum outro lugar da literatura cristã é tão perfeitamente descrita a relação entre a paz espiritual e a visão da cruz: “[Cristão] correu assim até que ele chegou ao lugar um tanto elevado; e naquele lugar se erguia uma cruz e um pouco mais abaixo um sepulcro. Assim eu vi em meu sonho, que exatamente quando Cristão chegou até a cruz, seu fardo se soltou de seus ombros e caiu de suas costas e começou a rolar e continuou assim até que chegou à boca do sepulcro, onde caiu e não o vi mais”. Então, cheio de contentamento e alívio, Cristão, exclamou com o coração repleto de felicidade: “Ele me deu repouso, pela sua angústia, e pela vida, e pela morte”. Chorando e pulando de pura alegria e com o coração pleno de profunda paz, ele deu três pulos de alegria e foi embora cantando: “Bendita cruz! Bendito sepulcro! Seja exaltado o Homem que por mim foi humilhado”. Numa narrativa cheia de suspense, Bunyan constrói personagens (Evangelista, Adulação, Malícia, Apoliom e Vigilância) e lugares alegóricos (Desfiladeiro do Desespero, o Pântano da Desconfiança, a Feira das Vaidades e o Rio da Morte) que aparecem na viagem do Cristão, o peregrino, rumo à Cidade Celestial: “[Os cidadãos da Feira da Vaidade] portanto trouxeram [Fiel] para fora para fazerem com ele conforme a lei deles. E primeiro o açoitaram, depois o esbofetearam, lancetaram a sua carne com facas; o apedrejaram com pedras, então furaram-no com suas espadas; e por último de tudo o queimaram até as cinzas numa estaca. Desta maneira, Fiel chegou ao seu fim. Agora eu vi que ali estava atrás da multidão uma carruagem e uma parelha de cavalos, esperando por Fiel que (tão logo quanto seus adversários o haviam matado) foi levado nela, através das nuvens, ao som de trombetas, ao caminho mais perto para o Portão Celestial.” A linguagem figurada inesquecível, e a rara mistura de pensamento e paixão baseavam-se nos ensinos clássicos da Reforma a respeito da depravação total do homem, da graça, da imputação da justiça de Cristo por meio da fé e da expiação – sendo que, segundo parece, Bunyan os recebeu diretamente das Escrituras com pouco contato intermediário com outros teólogos.
Em sua prisão por quase 12 anos, ele foi separado de tudo o que era secundário, e aqueles anos o levaram a pensar que ele devia enfatizar e insistir as doutrinas primárias e essenciais da fé cristã. “O que me dominava era ponderar e parar, e tornar a parar, as bases e o fundamento dos princípios pelos quais sofri”. As experiências do peregrino são as de cada cristão, à medida que ele caminha por esta vida em direção ao céu. Bunyan descreveu as provações e tentações, as alegrias e confortos da vida cristã. Se alguém ler O Peregrino sem saber nada da história de Bunyan, não teria a mínima idéia da denominação particular a que ele pertenceu.
Os cristãos e a guerra espiritual
Os puritanos foram grandes guerreiros espirituais. Encaravam a vocação cristã como uma interminável luta contra o mundo, a carne e o diabo, e armavam-se para tal conflito. Suas obras alegóricas são a história de uma luta quase constante, verbal e física. Em outro de seus livros, A Peregrina, o pastor puritano ideal, Grande-Coração, que age como guia, instrutor e protetor do grupo de Cristiana, também figura no papel de matador de gigantes, tendo lutado contra e destruído os gigantes Cruel e Desespero, no decorrer da narrativa. Quando o grupo de peregrinos encontra-se com outro personagem puritano ideal, Valente-pela-verdade, tendo o “seu rosto todo ensangüentado”, pois acabara de ser espancado por três assaltantes: Cabeça-Doida, Sem-Respeito e Pragmático, então tem lugar o seguinte diálogo: Disse Grande-Coração a Valente-pela-Verdade: “Tu tens te conduzido com dignidade: deixa-me ver a tua espada”. Ele lha mostrou. Tendo-a tomada em sua mão, olhou para ela por algum tempo e disse: “Ah! É realmente uma lâmina de Jerusalém”. Valente-pela-Verdade: “É verdade. Que um homem tenha uma dessas lâminas, brandindo-a na sua mão habilidosa, e ele poderá atirar-se contra um anjo. Ele não precisará temer segurá-la se ao menos souber onde colocá-la. Seu fio nunca ficará embotado. Cortará carne, ossos, alma, espírito e tudo o mais”. Grande-Coração: “Lutaste por muito tempo. Não estarás cansado?” Valente-pela-Verdade: “Lutei até que minha espada grudou-se à minha mão. Mas, quando a mão e a espada ficaram unidas, como se a espada fosse uma continuação do meu braço e quando o sangue me escorria pelos dedos, então passei a lutar ainda com maior coragem”. Grande-Coração: “Fizeste bem. Resististe até o sangue na luta contra o pecado”. Uma das facetas da grandeza de Bunyan e do movimento puritano era sua ênfase em que o cristão verdadeiro não pode confiar em ninguém senão somente em Deus e sua revelação, e deve se apoiar exclusivamente na Palavra de Deus, em uma hostilidade contínua contra todos os males que se interpunham no caminho da piedade e da verdadeira fé; e, embora muito amassem a paz, havia a prontidão de saírem a campo na luta contra esses erros e continuarem lutando enquanto houvesse esses males. O cristão será bem sucedido em suas batalhas e peregrinações não por causa de sua esperteza ou pela prática de exercícios espirituais, mas sim por sua fé na graça de Deus.
É provável que Bunyan tenha sido um dos principais colaboradores na produção da chamada Segunda Confissão Londrina de 1677, uma das primeiras e mais importantes confissões de fé batistas. Em julho de 1688, ele pregou seu ultimo sermão, em João 1.13. Bunyan morreu em 31 de agosto de 1688, aos 60 anos.
Depois de dez dias de uma violenta febre, contraída após uma longa viagem a cavalo debaixo de forte chuva, ele morreu e foi enterrado no cemitério de Bunhill Fields, em Londres (onde Owen também foi enterrado). E aquele pregador, proibido de ministrar a pequenos grupos em lares pobres, através de seus livros prega hoje a milhões de pessoas de todas as terras e gerações, enquanto aqueles que procuravam tapar-lhe a boca para que não falasse jazem hoje no pó do esquecimento.
Pr. Franklin Ferreira