Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus, a todos os santos que vivem em Éfeso, e fiéis em Cristo Jesus: Graça a vós outros e paz da parte de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo. Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; bem como nos elegeu nele antes da criação do mundo, para que fôssemos santos e sem culpa diante dele em amor.
Paulo, apóstolo. Uma vez que a mesma forma de saudação, ou, ao menos, com bem pouca diferença, é usada em todas as epístolas, seria supérfluo repetir aqui o que já ficou expresso alhures. Ele se intitula apóstolo de Jesus Cristo; pois a todos quantos foi concedido o ministério da reconciliação, sua função é a de embaixador de Cristo. A palavra ‘apóstolo’ é, deveras, mais especializada; pois não é todo ministro do evangelho (como veremos mais adiante, em 4:11) que de fato é apóstolo. Este tema, porém, eu já o abordei mais amplamente em Gálatas.
O apóstolo adiciona pela vontade de Deus. Porquanto nenhum homem deve tomar essa honra para si próprio, mas deve esperar pela vocação divina, pois Deus é o único que pode legitimar os ministros. Ele assim confronta os escárnios dos homens ímpios com a autoridade de Deus, e remove toda e qualquer ocasião de disputa irrefletida.
Ele os denomina santos, a quem em seguida chama de fiéis em Cristo. Portanto, nenhuma pessoa crente deixa de ser igualmente santa; em contrapartida, nenhuma pessoa santa deixa de ser igualmente crente. A maioria das cópias gregas omite o termo todos; fiquei, todavia, relutante em eliminá-lo, visto que, ao menos, ele deve ser compreendido.
Bendito seja Deus. O apóstolo enaltece sublimemente a graça de Deus para com os efésios, buscando incitar seus corações à gratidão com o fim de deixá-los todos inflamados, e assim invadi-los e enchê-los com essa idéia. Aqueles que reconhecem em si mesmos uma efusão tal da bondade de Deus, tão plena e absolutamente perfeita, e que se exercitam nela com fervorosa meditação, jamais abraçarão novas doutrinas, as quais obscurecem a própria graça que sentem tão poderosamente em seu interior. O propósito do apóstolo, portanto, ao afirmar a imensurabilidade da graça divina para com os efésios, era prepará-los a fim de que não permitissem que sua fé fosse abalada pelos falsos apóstolos, como se seu chamamento fosse algo duvidoso, ou como se sua salvação devesse ser vista por outro prisma. Ele lhes assegura, ao mesmo tempo, que a plena certeza da salvação consiste no fato de que, através do evangelho, Deus revela, em Cristo, seu amor para conosco. A fim de confirmar, porém, a questão mais plenamente, ele chama sua atenção para a causa primeira, para a fonte, ou seja, a eterna eleição divina, por meio da qual, antes que houvéssemos nascido, fomos adotados como filhos. E isso para que soubessem eles [e nós!] que já estavam salvos, não por meio de qualquer ocorrência fortuita ou prevista, mas por meio do eterno e imutável decreto de Deus.
O verbo abençoar é aqui usado em mais de um sentido, tanto em se referindo a Deus como em se referindo aos homens. Encontro na Escritura uma quádrupla significação para ele. Abençoamos a Deus quando O louvamos, declarando Sua munificência. Diz-se, porém, que Deus nos abençoa, quando Ele torna nossas atividades bem sucedidas, e em Sua benevolência nos concede felicidade e prosperidade; e a razão é que somos abençoados unicamente em Seu beneplácito. Notemos como ele expressa o grande poder que habita em toda a Palavra de Deus para a Igreja e para cada crente individualmente. Os homens abençoam uns aos outros através da oração. A bênção sacerdotal é mais do que uma oração, visto ser ela um testemunho e garantia da bênção divina; porquanto os sacerdotes receberam a incumbência de abençoar no Nome do Senhor. Portanto, Paulo, aqui, abençoa [=bendiz] a Deus com uma confissão de louvor, porque Deus nos abençoou, ou seja, nos enriqueceu com toda sorte de bênção ou graça.
Não faço objeção alguma contra a observação de Crisóstomo, quando ele diz que a palavra espirituais traça um contraste implícito entre a bênção de Moisés e a de Cristo. A lei continha suas bênçãos, mas é só em Cristo que a perfeição é encontrada, porquanto é Ele a perfeita revelação do reino de Deus, que nos conduz diretamente ao céu. Quando a própria substância é revelada, as figuras não são mais necessárias.
Quando ele diz celestiais, pouco importa se antepomos ‘lugares’ ou ‘benefícios’. Ele simplesmente desejava expressar a superioridade daquela graça que nos é concedida através de Cristo; que sua felicidade não está neste mundo, e, sim, no céu e na vida eterna. A religião cristã, sem dúvida, como ensinamos alhures [1 Timóteo 4:8], contém promessas não só referentes à vida futura, mas também com referência à vida presente; seu alvo, porém, é a felicidade espiritual, quanto mais sendo o reino de Cristo espiritual. O apóstolo contrasta Cristo com todos os símbolos judaicos, nos quais está contida a bênção sob o regime da lei. Porque, onde Cristo se faz presente, todas aquelas coisas se fazem supérfluas.
Assim como nos elegeu nele. Aqui, o apóstolo declara que a eterna eleição divina é o fundamento e causa primeira, tanto de nosso chamamento como de todos os benefícios que de Deus recebemos. Se nos pede a razão por que Deus nos chamou a participar do evangelho, por que diariamente Ele nos concede bênçãos em grande profusão, por que Ele nos abre os portões celestiais, teremos sempre que retroceder a este princípio, ou seja: que Deus nos elegeu antes que o mundo viesse à existência. O próprio tempo da eleição revela que ela é gratuita; pois, o que poderíamos merecer, ou em que consistiria o nosso mérito, antes que o mundo fosse criado? Pois quão pueril é o raciocínio sofístico, o qual afirma que não fomos eleitos porque já éramos dignos, e, sim, porque Deus previra que seríamos dignos. Todos nós estamos perdidos em Adão; portanto, Deus não poderia ter-nos salvo de perecermos por meio de Sua própria eleição, se não havia nada para ser previsto. O mesmo argumento é usado em Romanos, onde, ao falar de Jacó e Esaú, diz ele: “E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal” [Romanos 9:11]. Embora, porém, eles ainda não tivessem agido, algum sofista da Sorbonne poderia replicar: “Deus previra o que eles poderiam fazer”. Tal objeção não possui força alguma à luz da natureza corrupta do homem, em quem nada pode ser visto senão matérias para a destruição.
Ao acrescentar: em Cristo, estamos diante da segunda confirmação da soberania da eleição. Porque, se somos eleitos em Cristo, tal fato se encontra fora de nós próprios. Isso não tem por base nosso merecimento, e, sim porque nosso Pai celestial nos enxertou, através da bênção da adoção, no Corpo de Cristo. Em suma, o nome de Cristo inclui todo mérito, bem como tudo quanto os homens possuem de si próprios; pois quando o apóstolo diz que somos eleitos em Cristo, segue-se que em nós mesmos não existe dignidade alguma.
Para que pudéssemos ser santos. O apóstolo indica o propósito imediato, não, porém, o principal. Pois não existe qualquer absurdo em supor-se que uma coisa possua dois objetivos. O propósito em realizar uma construção é para que haja uma casa. Esse é o alvo imediato. Mas a conveniência de se habitar nela é o alvo último. Era necessário mencionar-se isso de passagem; pois Paulo de imediato menciona outro alvo –– a glória de Deus. Todavia, não há nenhuma contradição aqui. A glória de Deus é a finalidade mais elevada, à qual a nossa santificação está subordinada.
Desse fato inferimos que a santidade, a inocência, e assim toda e qualquer virtude que porventura exista no homem, são frutos da eleição. E assim, uma vez mais Paulo expressamente põe de lado toda e qualquer consideração de mérito [humano]. Se Deus houvera previsto em nós tudo o que porventura fosse digno de eleição, então se diria precisamente o contrário. Pois a intenção de Paulo é que toda a nossa santidade e inocência de vida emanam da eleição divina. Como explicar, pois, que alguns homens são piedosos e vivem no temor do Senhor, enquanto que outros se entregam sem reservas a toda espécie de perversidade? Se Paulo merece credibilidade, a única razão é que os últimos conservam sua disposição natural, enquanto que os primeiros foram eleitos para a santidade. Certamente que a causa não segue o efeito, e, portanto a eleição não depende da justiça que vem das obras, a qual Paulo declara aqui ser a causa.
Além do mais, nessa cláusula ele quis dizer que a eleição não abre as portas à licenciosidade, como que dando aos ímpios ocasião a que blasfemem e digam: Vivamos da maneira que nos agrade, pois se já fomos eleitos, é impossível que venhamos a perecer”. O apóstolo está afirmando-lhes claramente que é uma atitude ímpia dissociar a santidade de vida da graça da eleição; porquanto Deus chama e justifica a todos aqueles a quem Ele elegeu. É igualmente sem fundamento a inferência que os cataristas, os celestinos e os donatistas extraíram destas palavras, ou seja: que nos é possível atingir a perfeição nesta vida. Esse é o alvo em direção ao qual devemos manter todo o curso de nossa vida; nunca, porém, o atingiremos até que nossa corrida haja terminado. Onde estão os homens que se espantam e evitam a doutrina da predestinação como sendo um confuso labirinto, que a reputam como sendo inútil e mesmo quase nociva? Nenhuma doutrina é mais útil e proveitosa quando utilizada de forma adequada e sóbria, ou seja, como Paulo o faz aqui, ao apresentar ele a consideração da infinita munificência de Deus e estimular-nos a render graças. Essa é a legítima fonte da qual devemos extrair nosso conhecimento da misericórdia divina. Se os homens usassem um outro argumento, a eleição fecharia sua boca, para que não se atrevam e não reivindiquem nada para si próprios. Lembremos-nos, porém, do propósito para o qual Paulo discute a predestinação, a fim de que, arrazoando com algum outro objetivo, não sigamos arriscadamente algum desvio.
Diante Dele em amor. Santidade, aos olhos de Deus, tem a ver com uma consciência pura; pois Deus não é enganado, à semelhança dos homens, pela pretensão externa; Ele, porém, olha para a fé, ou seja, para a veracidade do coração. Se você atribuir a Deus a palavra ‘amor’, então significa que a única razão pela qual Ele nos elegeu foi o Seu amor pela humanidade. Prefiro, porém, considerar o amor à luz da última parte do versículo; ou seja: que a perfeição dos crentes consiste no amor; não que Deus requeira somente amor, mas que ele é uma evidência do temor de Deus e da obediência a toda a lei.
Fonte: Extraído do comentário de Efésios de João Calvino, publicado pela Editora Paracletos, páginas 21-27.