1. Porque Cristo instituiu a Ceia
Deus, depois de nos ter recebido em Sua família, não para servir-se de nós como criados, e sim para ter-nos no número de Seus filhos, a fim de conduzir-nos como um bom pai de família, que se preocupa com seus filhos e descendentes, e pensa no modo de sustentar-nos durante toda nossa vida. E não contente com isto, nos quis dar a segurança de Sua perpétua liberalidade para conosco, dando-nos um presente. Para este fim instituiu por meio de Seu Unigênito Filho outro sacramento; a saber; um banquete espiritual, no qual Cristo assegura que é o pão da vida (João 6:51) com o qual nossas almas são mantidas e sustentadas pela bem aventurada imortalidade.
E como é sobremodo necessário entender um tão grande mistério; e por ser tão profundo, requer uma explicação particular; e Satanás ao contrário, a fim de privar a Igreja deste inestimável tesouro, por muito tempo o manteve obscurecido, primeiramente com trevas, e depois com nuvens mais espessas; e, além disso tem suscitado discussões e disputas para desagradar aos homens. E posto que em nossos dias ele tem usado as mesmas armas e artifícios, me esforçarei em primeiro lugar para explicar o que se deve saber a respeito da Santa Ceia do Senhor, de uma forma que os ignorantes possam entender; e depois explicarei aquelas dificuldades nas quais Satanás tem procurado enlaçar o mundo.
O pão e o vinho são sinais de uma realidade espiritual. Antes de tudo, os sinais são o pão e o vinho; os quais representam o mantimento espiritual que recebemos do corpo e sangue de Cristo. Porque como no Batismo, ao regenerar-nos, Deus , nos incorpora a Sua Igreja e nos faz Seus por adoção, assim também temos dito que com este desempenha o papel de um zeloso pai de família proporcionando-nos continuamente o alimento com o qual nos conserva e mantém naquela vida que nos gerou com Sua Palavra; Agora bem, o único sustento de nossas almas é Cristo, e por isso nosso Pai Celestial nos convida para que venhamos a Ele, para que alimentados com este sustento possuamos dia após dia maior vigor até chegar por fim à imortalidade no céu. E como este mistério de nos unirmos com Cristo é por sua natureza incompreensível, Ele nos mostra a figura e imagem com sinais visíveis mui próprios de nossa débil condição. Mais ainda; como se nos desse um presente, nos dá tal segurança disso, como se O víssemos com os nossos próprios olhos; porque esta semelhança tão familiar: que nossas almas são alimentadas com Cristo, exatamente igual o pão e o vinho natural alimentam nossos corpos, penetra nos entendimentos, por mais rudes que sejam.
Vemos pois para que fim este sacramento foi instituído; a saber, para nos assegurar que o corpo do Senhor foi, uma vez por todas, sacrificados por nós, de tal maneira que agora o recebemos e ao recebermos sentimos em nós a eficácia deste único sacrifício. E desta forma, que Seu sangue de tal maneira tem sido derramado por nós, que nos possa servir de bebida perpetuamente. Isto é o que dizem as palavras da promessa, que ali se adicionam: ‘’Tomai, comei, este é o meu corpo, que é dado por vós’’ ( Mt. 26:26; Mc 14:22; Lc 22:19; 1 Cor. 11;24). Assim, nos manda que tomemos e comamos o corpo que uma vez foi oferecido para nossa salvação, a fim de que tenhamos a plena confiança de que a virtude deste sacrifício se mostrará em nós. E por isso chama o cálice, pacto em seu sangue; porque de certa forma renova o pacto que uma vez fez com o Seu sangue, ou melhor dizendo, continua realizando no que concerne a confirmação de nossa fé, sempre que nos dá seu preciso sangue para que o bebamos.
2. Os frutos da Santa Ceia
Nossas almas podem obter deste sacramento grande fruto de confiança e doçura, pois temos testemunho de que Jesus Cristo, de tal maneira é incorporado a nós, e nós a Ele, que tudo quanto é Seu podemos chamar de ‘’nosso’’. E tudo quanto é nosso, podemos dizer que é Seu. Por isso com toda segurança nos atrevemos a nos assegurar de que a vida eterna e o reino dos céus no qual Cristo entrou não pode deixar de ser nossos, assim com não pode deixar de ser d’Ele. ; e, pelo contrário, não podemos ser condenados pelos nossos pecados, posto que ele nos tem absolvido de todos, tomando-os sobre Si e desejando que lhes fossem imputados, como se Ele os houvesse cometido. Tal é a admirável troca e substituição que Ele, meramente por Sua infinita bondade, quis fazer conosco. Ele, aceitando toda nossa pobreza, nos tem transferido todas as suas riquezas, tomando sobre si nossas fraquezas, nos tem feito forte com Sua virtude e potência, recebendo em Si nossa morte, nos tem dado a Sua imortalidade; carregando todo o peso dos nossos pecados, debaixo dos quais estávamos em agonia, nos tem dado Sua justiça para que nos apoiemos n’Ele, descendo a terra nos tem aberto o caminho para chegar ao céu, fazendo-se filho do homem, nos tem feito filhos de Deus.
3. A Ceia demonstra nossa redenção e que Cristo é nosso
Todas estas coisas Deus nos tem prometido plenamente neste sacramento, que devemos estar certos e seguros que nos são simbolizadas nele, nem mais nem menos que se Cristo estivesse presente e o víssemos com os nossos próprios olhos, e o tocássemos com as nossas mãos. Porque Sua Palavra não pode falhar nem mentir: Tomai, comei, este é o meu corpo que é dado por vós; este é meu sangue que é derramado para a remissão de vossos pecados. Ao mandar que o tomem, dá a entender que é nosso ao ordenar que o comam e que bebam, mostra que se torna uma substância conosco. Quando diz: Este é o meu corpo, entregue por vós; este é o meu sangue, derramado por vós, nos declara e nos ensina que eles não são tão Seus como nossos, pois os têm tomado e deixado, não para Sua comodidade, e sim por amor a nós e para nosso proveito.
Devemos notar diligentemente, que quase toda virtude e força do sacramento consiste nestas palavras: que por vós é entregue; que por vós se derrama; porque de outra maneira não nos serviria de grande coisa que o corpo e o sangue do Senhor nos fosse servido agora, se não houvessem sido entregues de uma vez por todas para a nossa salvação e redenção. E assim nos são representados pelo pão e vinho, para que saibamos que não somente são nossos, e sim que também nos concedem a vida e o sustento espiritual. Já temos advertido que pelas coisas corporais que se propõem devemos dirigir-nos segundo uma certa proporção e semelhança, às coisas espirituais. E assim quando vemos que o pão nos é apresentado como um símbolo e sacramento do corpo de Cristo, devemos recordar em seguida a semelhança de que como o pão sustenta e mantém o corpo, de mesma maneira o corpo de Jesus Cristo é o único mantimento para alimentar e vivificar a alma.. Quando vemos que nos é dado o vinho como símbolo e sacramento do sangue, devemos considerar para que serve o vinho ao corpo e que bem este lhe faz, para que entendamos que o mesmo faz o sangue de Cristo em nós: nos confirma, conforta, regozija e alegra. Porque se considerarmos atentamente que proveito obtemos do fato de que o corpo sacrossanto de Cristo tenha sido entregue e Seu precioso sangue derramado por nós , veremos claramente , que o que se atribui ao pão e ao vinho lhes convém perfeitamente segundo a analogia e semelhança a que aludimos.
4. Cristo é nosso pão e nossa bebida de vida
Não é, pois, o principal do sacramento dar-nos simplesmente o corpo de Jesus Cristo; o principal é selar e firmar esta promessa na qual Jesus Cristo nos disse que Sua carne é verdadeira comida, e Seu sangue bebida, mediante os quais somos alimentados para a vida eterna, e nos assegura que Ele é o pão da vida, do qual o que tivesse comido, viverá eternamente. E para isto, quer dizer, para selar a mencionada promessa, o sacramento nos remite à cruz de Cristo, onde esta promessa tem sido de todo realizada e cumprida. Porque não comemos a Jesus Cristo de maneira apropriada, a menos que O tenhamos como tendo sido crucificado, enquanto com vívida apreensão, percebemos a eficácia de Sua morte. Porque Ele se chama pão da vida, não por causa do sacramento, como muitos falsamente têm entendido, mas porque nos tem sido dado como tal pelo Pai; e se nos mostra tal, quando se havendo feito partícipe de nossa condição humana mortal, nos fez participantes de sua divina imortalidade; quando se oferecendo em sacrifício, tomou sobre si toda nossa maldição, para encher-nos de Sua bênção; quando com Sua morte devorou e tragou a morte; quando em Sua ressurreição, ressuscitou com glória e incorrupção a nossa carne corruptível, da qual Ele se havia revestido.
5. Recebemos a Cristo, pão da vida, no Evangelho e na Ceia
Resta somente que tudo isto se torno nosso, por aplicação. Isto é feito por meio do evangelho, e mais claramente pela Santa Ceia, onde Cristo oferece a Si mesmo a nós, com todas as Suas bênçãos, e O recebemos em fé. O sacramento, portanto, não faz que Cristo se torne pela primeira vez o pão da vida; mas, ele nos recorda que Cristo foi feito o pão da vida, para que constantemente O comamos, ele nos dá o gosto e o sabor deste pão, e nos faz sentir sua eficácia. Porque nos assegura que tudo isto que Jesus Cristo fez e padeceu, foi para nos vivificar. E além do mais, que esta vivificação é eterna. Porque como Cristo não seria o pão da vida, se uma vez não houvesse nascido, morte e ressuscitado por nós, assim também é mister que a virtude destas coisas seja permanente e imortal, a fim de que recebamos o fruto das mesmas.
Isto o expõe mui bem em São João, quando disse: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo” (João 6:51); onde sem dúvida alguma, demonstra que Seu corpo havia de ser pão para dar a vida espiritual às nossas almas, em quanto o devia entregar à morte por nossa salvação. Porque Ele O deu uma vez por pão, quando O entregou para ser crucificado pela redenção do mundo; e O dá a cada dia, quando pela Palavra do Evangelho se oferece e apresenta, para que participemos dEle, visto que foi crucificado por nós; e, por conseguinte, sela um tal participação com o mistério de Sua Santa Ceia; e quando interiormente cumpre o que externamente significa.
Não despojemos os sinais de sua realidade. Comungar não é somente crer. Não há ninguém, a não ser que careça absolutamente de sentimentos religiosos, que não admita que Jesus Cristo é o pão da vida, com o qual os fiéis são sustentados para a vida eterna; porém, o que não estão de acordo, é no modo de se realizar tal participação.
Há alguns que numa palavra definem que comer a carne de Cristo e beber Seu sangue não é outra coisa, senão crer nEle. Porém, a mim me parece que o mesmo Cristo quis dizer, neste notável sermão, algo muito mais alto e sublime, ao recomendar-nos que comamos Sua carne; a saber, que somos vivificados pela verdadeira participação que nos dá nEle, a qual se significa pelas palavras comer e beber, a fim de que ninguém pensasse que consistia num simples conhecimento. Porque, como o comer e beber, e não o simplesmente mirá-lo, é o que dá sustento ao corpo, assim também é necessário que a alma seja verdadeiramente partícipe de Cristo, para ser mantida na vida eterna.
Nota do tradutor: Tradução feita a partir da versão espanhola da Editora FELIRE.
Traduzimos as páginas 1070-1073